Afonso Maria Ligorio Soares *
Para que o estudioso capte algo de seu objeto de estudo, classificações são sempre inevitáveis. No entanto, elas são igualmente redutivas, pois tendem a cegar o observador de outras nuanças e aspectos também encontráveis na realidade examinada.
Com as religiões não é diferente. Precisamos classificá-las para poder dizer algo a seu respeito. Mas nenhuma delas cabe perfeitamente em nossas tipologias. A começar pelo próprio conceito “religião”. Para todo cientista da religião, o islamismo ou o judaísmo são mais do que meras religiões. E o mesmo se poderia dizer do budismo ou do hinduísmo, das tradições afrobrasileiras ou do cristianismo. O conceito “religião” não dá conta de explicar a imensa variedade do fenômeno religioso. Tomemos o cristianismo, por exemplo.
O cristianismo
Esse movimento gerado em torno do profeta Jesus de Nazaré era algo tão estranho aos olhos de seus contemporâneos que levou mais de dois séculos para ser aceito oficialmente como uma das tantas religiões praticadas dentro das fronteiras do Império Romano. Isso porque a comunidade cristã primitiva não contava com templos sagrados nem com sacerdotes, altares e cultos sacrificiais (cf. Carta aos Hebreus). Bastava a reunião semanal para a partilha da Palavra de Deus e a fração do pão. A linguagem habitual dos primeiros cristãos não provinha da terminologia sagrada, mas fazia uso de palavras da sociedade civil: ecclesia ou assembleia, presbíteros ou anciãos, diáconos ou garçons (servidores das mesas), epíscopos/bispos ou fiscalizadores/tesoureiros. Mais tarde, termos como diocese, mitra, cúria, província foram extraídos da organização administrativa do Império Romano.
O cristianismo é uma religião profética, mística ou sapiencial? Seria empobrecedor enquadrá-lo em apenas uma das alternativas. Jesus é um profeta da melhor estirpe do profetismo ético de Israel. Sua pregação visa uma volta ao espírito original da Tora, contra os casuísmos e acomodações escusas dos chefes religiosos daquele tempo. Provavelmente, Jesus nunca pensou em fundar “outra” religião; mas em denunciar e corrigir os mecanismos que reduzem o “deus” das religiões a instrumento a serviço das maquinações humanas.
A tradição cristã, entretanto, também acolheu em seus textos sagrados obras de caráter sapiencial. O próprio Jesus foi reconhecido como sábio entre seus contemporâneos. Igualmente rica é a tradição mística cristã, que nos legou nomes como Inácio de Antióquia, Irineu, Agostinho, João da Cruz, Teresa de Jesus e Edith Stein.
A historicidade do cristianismo
O que pode marcar uma distinção importante entre o cristianismo e outras tradições orientais (hinduísmo, budismo, taoísmo, confucionismo) talvez seja a particular noção de historicidade do primeiro, por sua vez oriunda da concepção temporal do judaísmo. Conforme tal mentalidade, há um futuro terrenal em que as promessas divinas do passado serão cumpridas. O amanhã será melhor do que o hoje, e o povo de Deus poderá usufruir, um dia, da Terra Prometida. Tal crença fundamenta uma visão de progresso diferenciada da noção, em geral, cíclica, que a filosofia grega herdou dos orientais.
O zoroastrismo persa, com quem os judeus tiveram contato a partir dos séculos 6o a 5o a.C., deixou sua marca nessa vertente religiosa semita ao introduzir a noção de combate cósmico entre o bem e o mal. A História é o campo de batalha entre esses dois princípios, e os humanos que ficarem do lado do bem serão recompensados no dia do Juízo. O eco do zoroastrismo manteve-se na chamada “literatura apocalíptica”.
A doutrina cristã está em continuidade com essa expectativa, mas traz algumas inovações. Para Jesus, “o Reino de Deus já está entre nós” (Mc 1, 15), embora não em sua plenitude. O Reino não é um mero acidente geográfico a ser alcançado em certa época; nem uma realidade totalmente nova e independente do que está sendo construído na história humana. Santo Agostinho assim comentava outra frase de Jesus: “Sim, meu Reino não é deste mundo, mas está neste mundo”. A História é, por assim dizer, a parte que nos cabe criar dentro do projeto mais amplo de Deus, que a contempla e ultrapassa, mas não a suprime.
O Deus dos cristãos
Outra novidade cristã constitui o próprio fundamento da certeza de que a vida e o testemunho de Jesus são um marco definitivo na história da revelação de Deus. Trata-se da afirmação (escandalosa para judeus e muçulmanos) de que Jesus é a verdadeira e única encarnação de Deus na História. Ele não é só o filho de Deus; ele é Deus-Filho. Mais: Jesus encarnou-se por obra do Deus-Espírito Santo e esse mesmo Espírito deu origem à Igreja.
A pretensão cristã, embutida na fé trinitária, é enorme: unir o princípio filosófico de uma causa primeira e fundamental de toda a realidade (monoteísmo metafísico) com a experiência popular da multiplicidade de manifestações do divino.
Como explicar, então, semelhante experiência de fé? Somente por metáforas, socorrendo-nos na mística cristã. São Boaventura proporá que o Pai (Lux) é o foco luminoso (Sol), o Filho (Lumen) são os raios de luz que dele partem, e o Espírito (Ignis) é o calor que coexiste no foco e acompanha os raios. Algo parecido já dissera Santo Atanásio: “O Pai é luz, o Filho seu brilho e o Espírito Santo, aquele pelo qual somos iluminados”. Deus se ocupou de nós e conosco de três maneiras diferentes. Deus antes de nós é o Criador e Pai; Deus conosco faz-se um ser humano dentro dos limites, adquirindo os condicionamentos da História; e Deus em nós e para nós, que continua a revelação do Filho, desdobrando novos significados: é o Espírito.
Mas Deus é sóbrio ao falar-nos de si mesmo. Seria inútil que ele se pusesse a discorrer conosco acerca do seu “de-dentro”. Diz São Bernardo: “Sei bem o que Deus é para mim; quanto ao que ele é para si, somente ele o sabe”.
Para o cristianismo, falar de Deus implica falar daquele lugar onde Deus se revelou: a pessoa e a história de Jesus; referir à Palavra, exigência de vida e esperança, que Jesus oferece ao mundo, isto é, seu Espírito.
A experiência e o discernimento do Espírito é a resposta àquela milenar questão: Deus ainda se encontra no meio de nós? O cristão sabe que Deus está conosco em Jesus, na força que provém do Senhor ressuscitado, e que nos leva ao encontro do Pai. Esse movimento inapelavelmente histórico, só o fazemos no Espírito-Sopro-Vento. E desse encontro não surgem indivíduos de primeira classe (clero) nem de segunda (laicato); apenas cristãos: pessoas que, no Espírito, celebram a presença divina nos momentos mais significativos de suas vidas (sacramentos) e testemunham seu compromisso com o Reino/Reinado do Pai.
*Teólogo e cientista social, é assistente-doutor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (SP) e professor de Teologia Fundamental no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).
Com as religiões não é diferente. Precisamos classificá-las para poder dizer algo a seu respeito. Mas nenhuma delas cabe perfeitamente em nossas tipologias. A começar pelo próprio conceito “religião”. Para todo cientista da religião, o islamismo ou o judaísmo são mais do que meras religiões. E o mesmo se poderia dizer do budismo ou do hinduísmo, das tradições afrobrasileiras ou do cristianismo. O conceito “religião” não dá conta de explicar a imensa variedade do fenômeno religioso. Tomemos o cristianismo, por exemplo.
O cristianismo
Esse movimento gerado em torno do profeta Jesus de Nazaré era algo tão estranho aos olhos de seus contemporâneos que levou mais de dois séculos para ser aceito oficialmente como uma das tantas religiões praticadas dentro das fronteiras do Império Romano. Isso porque a comunidade cristã primitiva não contava com templos sagrados nem com sacerdotes, altares e cultos sacrificiais (cf. Carta aos Hebreus). Bastava a reunião semanal para a partilha da Palavra de Deus e a fração do pão. A linguagem habitual dos primeiros cristãos não provinha da terminologia sagrada, mas fazia uso de palavras da sociedade civil: ecclesia ou assembleia, presbíteros ou anciãos, diáconos ou garçons (servidores das mesas), epíscopos/bispos ou fiscalizadores/tesoureiros. Mais tarde, termos como diocese, mitra, cúria, província foram extraídos da organização administrativa do Império Romano.
O cristianismo é uma religião profética, mística ou sapiencial? Seria empobrecedor enquadrá-lo em apenas uma das alternativas. Jesus é um profeta da melhor estirpe do profetismo ético de Israel. Sua pregação visa uma volta ao espírito original da Tora, contra os casuísmos e acomodações escusas dos chefes religiosos daquele tempo. Provavelmente, Jesus nunca pensou em fundar “outra” religião; mas em denunciar e corrigir os mecanismos que reduzem o “deus” das religiões a instrumento a serviço das maquinações humanas.
A tradição cristã, entretanto, também acolheu em seus textos sagrados obras de caráter sapiencial. O próprio Jesus foi reconhecido como sábio entre seus contemporâneos. Igualmente rica é a tradição mística cristã, que nos legou nomes como Inácio de Antióquia, Irineu, Agostinho, João da Cruz, Teresa de Jesus e Edith Stein.
A historicidade do cristianismo
O que pode marcar uma distinção importante entre o cristianismo e outras tradições orientais (hinduísmo, budismo, taoísmo, confucionismo) talvez seja a particular noção de historicidade do primeiro, por sua vez oriunda da concepção temporal do judaísmo. Conforme tal mentalidade, há um futuro terrenal em que as promessas divinas do passado serão cumpridas. O amanhã será melhor do que o hoje, e o povo de Deus poderá usufruir, um dia, da Terra Prometida. Tal crença fundamenta uma visão de progresso diferenciada da noção, em geral, cíclica, que a filosofia grega herdou dos orientais.
O zoroastrismo persa, com quem os judeus tiveram contato a partir dos séculos 6o a 5o a.C., deixou sua marca nessa vertente religiosa semita ao introduzir a noção de combate cósmico entre o bem e o mal. A História é o campo de batalha entre esses dois princípios, e os humanos que ficarem do lado do bem serão recompensados no dia do Juízo. O eco do zoroastrismo manteve-se na chamada “literatura apocalíptica”.
A doutrina cristã está em continuidade com essa expectativa, mas traz algumas inovações. Para Jesus, “o Reino de Deus já está entre nós” (Mc 1, 15), embora não em sua plenitude. O Reino não é um mero acidente geográfico a ser alcançado em certa época; nem uma realidade totalmente nova e independente do que está sendo construído na história humana. Santo Agostinho assim comentava outra frase de Jesus: “Sim, meu Reino não é deste mundo, mas está neste mundo”. A História é, por assim dizer, a parte que nos cabe criar dentro do projeto mais amplo de Deus, que a contempla e ultrapassa, mas não a suprime.
O Deus dos cristãos
Outra novidade cristã constitui o próprio fundamento da certeza de que a vida e o testemunho de Jesus são um marco definitivo na história da revelação de Deus. Trata-se da afirmação (escandalosa para judeus e muçulmanos) de que Jesus é a verdadeira e única encarnação de Deus na História. Ele não é só o filho de Deus; ele é Deus-Filho. Mais: Jesus encarnou-se por obra do Deus-Espírito Santo e esse mesmo Espírito deu origem à Igreja.
A pretensão cristã, embutida na fé trinitária, é enorme: unir o princípio filosófico de uma causa primeira e fundamental de toda a realidade (monoteísmo metafísico) com a experiência popular da multiplicidade de manifestações do divino.
Como explicar, então, semelhante experiência de fé? Somente por metáforas, socorrendo-nos na mística cristã. São Boaventura proporá que o Pai (Lux) é o foco luminoso (Sol), o Filho (Lumen) são os raios de luz que dele partem, e o Espírito (Ignis) é o calor que coexiste no foco e acompanha os raios. Algo parecido já dissera Santo Atanásio: “O Pai é luz, o Filho seu brilho e o Espírito Santo, aquele pelo qual somos iluminados”. Deus se ocupou de nós e conosco de três maneiras diferentes. Deus antes de nós é o Criador e Pai; Deus conosco faz-se um ser humano dentro dos limites, adquirindo os condicionamentos da História; e Deus em nós e para nós, que continua a revelação do Filho, desdobrando novos significados: é o Espírito.
Mas Deus é sóbrio ao falar-nos de si mesmo. Seria inútil que ele se pusesse a discorrer conosco acerca do seu “de-dentro”. Diz São Bernardo: “Sei bem o que Deus é para mim; quanto ao que ele é para si, somente ele o sabe”.
Para o cristianismo, falar de Deus implica falar daquele lugar onde Deus se revelou: a pessoa e a história de Jesus; referir à Palavra, exigência de vida e esperança, que Jesus oferece ao mundo, isto é, seu Espírito.
A experiência e o discernimento do Espírito é a resposta àquela milenar questão: Deus ainda se encontra no meio de nós? O cristão sabe que Deus está conosco em Jesus, na força que provém do Senhor ressuscitado, e que nos leva ao encontro do Pai. Esse movimento inapelavelmente histórico, só o fazemos no Espírito-Sopro-Vento. E desse encontro não surgem indivíduos de primeira classe (clero) nem de segunda (laicato); apenas cristãos: pessoas que, no Espírito, celebram a presença divina nos momentos mais significativos de suas vidas (sacramentos) e testemunham seu compromisso com o Reino/Reinado do Pai.
*Teólogo e cientista social, é assistente-doutor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (SP) e professor de Teologia Fundamental no Instituto de Teologia da Diocese de Santo André (SP).
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