segunda-feira, 9 de março de 2015
REVISTA TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências -ELIANE POTIGUARA
Povos indígenas sempre estiveram à margem dos padrões culturais brasileiros, pela intolerância e discriminação social e racial da cultura dominante que obviamente estabelece as regras da informação e comunicação. No entanto um passo positivo foi dado na FLIMT, Feira do Livro Indígena de Mato Grosso, de 06 a 11 de outubro de 2009, em parceria com a Secretaria de Cultura/Governo do Estado do Mato Grosso, Nearin e Inbrapi, quando demonstraram seu potencial nas artes e nas letras, trazendo para a visibilidade sua cosmovisão e demandas. É uma nova forma de trabalho pelos direitos humanos.
Quando líderes promovem informações em rádios, vídeos, TVs Comunitárias, contrapondo às aldeias globais ou ainda quando criam cartilhas de alfabetização na língua materna, ou quando criam sites para promover a cura de doenças ou comerciar a venda do Guaraná, por exemplo, o fazem numa tentativa de sair da invisibilidade cultural, objetivando a tonificação daquele povo ou cultura, e no objetivo de expressar-se, seja na luta pelos direitos humanos ou trazer à luz do conhecimento oficial, científico, acadêmico e religioso a sua contribuição na história, enfim o seu conhecimento tradicional, na realidade sua propriedade intelectual. Isso precisa ser respeitado e ampliado! Povos indígenas já não precisam de muletas, são protagonistas da sua história.
ELIANE POTIGUARA
Minha Pedra Verde
Quando parteiras e mulheres indígenas questionam programas de esterilização, quando pajés e curandeiros se reúnem nas matas e montanhas, ou quando líderes interceptam estradas ou hidrelétricas na defesa de suas terras, o fazem para defenderem suas tradições e meio-ambiente. Isso é voz!... A voz da biodiversidade indígena.
Quando indígenas criam grupos de dança, músicas, grupo de teatro, coral infantil, quando promovem imprensa escrita na Internet, promovem a literatura indígena (oral ou escrita), o fazem no objetivo pleno de difundir informações e comunicações que não conseguem, devido à desvalorização dessa cultura milenar, que por questões históricas, éticas, precisa finalmente ser reconhecida e respeitada na prática e porque não também, ser atendida por uma política compensatória, através de ações afirmativas, implantadas nas políticas públicas. A Lei 11.645 que orienta ao ensino étnico nas escolas é um caminho que precisa ser mais fortalecido pelas Secretarias de Educação e Cultura.
Todas essas variantes fazem parte da cultura indígena e estão interligadas numa única cosmologia: o território ancestral, o espaço ético, mítico, místico, mágico e sagrado da ancestralidade fortalecidos pelos anciãos e anciãs e perpetuados pelos jovens, através da educação informal e natural, reforçados pela educação formal, daí a importância também da Universidade Indígena, dos Círculos dos Saberes, para atender a uma educação diferenciada. Essa visão indígena é uma grande contribuição de vida para a sociedade brasileira que precisa ser estimulada para um respeito à diversidade cultural, onde a cultura indígena seja também um expoente.
Nossas ervas medicinais, nossa cerâmica marajoara de origem indígena, nossos alimentos tradicionais, nosso guaraná, cupuaçu, nossos lugares sagrados, nossas terras, nossos cemitérios, nossas cantigas, histórias e lendas, nossas orações, nossos cânticos sagrados, nossa caça, nossa pesca, nossa educação, saúde e agricultura são as nossas vidas. Essa cosmologia pode ser difundida na sociedade de informação, fortalecida pelas Redes de Comunicação Indígena, pelas rádios comunitárias, pela internet através dos sites, pelos canais de televisão, e mesmo pelas Conferências ou Seminários indígenas, olho a olho ou virtuais, mas não mais precários, mas de uma forma digna, tecnológica, científica, educativa e sistemática, apoiada pelo GOVERNO. Assim abrimos espaços nas Feiras de Livros, a exemplo da FNLIJ, FLIFLORESTA, FLIMT, entre outras que estamos percorrendo. É uma vitória.
É um desafio que deve ser ultrapassado através da conscientização, da capacitação, da formação técnica, da criação de bancos de dados indígenas para garantir todo acervo histórico, garantindo suas patentes, conhecimentos e propriedade intelectual. A cultura tradicional também sofre evoluções com o modernismo e tecnologias. Essas tecnologias devem ser usadas como ferramentas para a defesa dos direitos indígenas. Desenvolvimento para povos indígenas deve ser um processo que coaduna cultura tradicional e novas tecnologias e novas esperanças. Povos indígenas devem se espelhar neste modelo de desafio, como foi na FLIMT, Feira do Livro Indígena de Mato Grosso.
Por esses conhecimentos tradicionais vou contar uma história aqui:
“O primeiro choro foi anunciado na região leste do Brasil, justo do lado do sol, na terra dos Tamoios, em 29 de setembro de 1950_ no dia do protetor dos Potyguara_ povo catequizado pela igreja há mais de cinco séculos: Era dia de São Miguel. Foi um grito sufocado de quem não queria vir, mas com o esforço dos guerreiros e guerreiras cosmológicos que ajudaram no parto tradicional, eu nasci de minha mãe, uma linda mulher, uma sacerdotisa das águas. Nasci carioca de avós e família indígenas desaldeados vivendo literalmente nas ruas e depois num agrupamento indígena, no Morro da Providência, atrás da Central do Brasil, depois descendo para a Rua General Pedra nº 263, numa comunidade de imigrantes da 2ª Guerra mundial, misturados com as prostitutas da Região do Mangue.
Eu tinha muita fome e logo me alimentei de meu próprio dedo polegar esquerdo, e ainda me lembro da cicatriz de tanto que o chupava e o mordia. Nasci precisamente um ser humano dessa vez, ou melhor, uma ser humana, coincidentemente ou não, do gênero feminino, pobre, de origem indígena de avós indígenas nordestinos, imigrantes no Rio de Janeiro. Nasci um lindo bebê, apesar de tão magrinho!
Interessante é que minha avó era analfabeta e desenhava o seu nome quando pediam e, muito mal marcava com tinta roxa, os documentos com o dedo polegar. Meus pais mal completaram o curso primário. Tios e tias eram analfabetos. Foi o caos!
Já nasci predestinada a pertencer a uma estatística esmagadora de pobres e excluídos social e economicamente no mundo.
O que seria a pobreza, eu sempre me perguntava? Já que ninguém me respondia, então comecei a dar vida a meus pés, aos meus próprios olhos, a visão, as janelas da alma!
O olhar foi minha grande arma contra o espírito obsessor de tudo aquilo que queria se impor de forma estranha à minha frente. Criei meu próprio muro e do lado de cá, comecei cedo a eleger e me relacionar com o bem, com a paz e a justiça. E elegi esses dons como bandeiras por toda uma existência. E elegi também a palavra como minha arma, aquela que se atira ao vento, que flutua e ecoa nos ouvidos e espíritos humanos.
Foi precisamente o “olhar” minha primeira ação política que definiu e ainda define meu estar no planeta Terra... Meus olhos saltitavam e iam atrás das palavras!
Nossa Casa Ancestral
Em que corpo estás?
Estás no ar, no sol, na luz
Estás no infinito
Estás nos séculos
Tão poucos séculos, diante da nossa eternidade
E quando nos veremos?
Sinto-te sempre
Na música, no sol, nas águas
No calor, no frio, nos ventos
Em cada estado, país ou continente
Sinto-te sempre meu amor
Apesar do que fizeram conosco!
Mostra-me o caminho
Mostra-me em sonhos
Em cânticos, a nossa libertação.
Intocável é a nossa Casa
Nossos filhos cresceram, morreram e renasceram.
Tornaram a morrer
Nossos filhos indígenas
Quase estão cegos pelo que aconteceu naquele dia
Muitos não reconhecem mais a sua mãe
Até as costas lhe deram
Pouco restou das cerimônias
Somente a dança com fé.
E não reconhecem mais a filha do pajé
Lembra-te das cerimônias sagradas
Quando banhávamos nus?
E que nossos corpos penetravam as profundezas do Planeta Terra?
Mergulhávamos e trazíamos
Dezenas de crianças
Filhas Dela!
Mas meu amor
Dá--me tuas fortes mãos
Leva-me em tuas grandes asas sagradas
E dá-me força e poder
Porque o implacável Criador
Manda-me voltar séculos e séculos
E a ele levar a sagrada Raiz da Lagoa Akujutibiró
A sagrada Raiz?
Está coberta de lama endurecida
Pelo peso da opressão dos séculos
E minhas mãos indígenas de mulher
Ainda estão frágeis e sangram
E se ferem nos espinhos dos pântanos!
Tento me esconder na barriga da Mãe-Terra
E esquecer nossos filhos
Mas vejo Tupã chorar
Vejo nossos filhos sofrerem
Então... O espírito do mar
Uma grande névoa azulada
Envolve-me, seduz-me, encanta-me
E levanta-me na chama guerreira
E faz-me falar, cantar e gritar...
Até que um dia
Os nossos filhos mortos, nascidos, e renascidos
Possam relembrar do olhar, docemente,
Da luz envolvente
E da tinta de jenipapo
Cravada pelo Grande Espírito em nossa cara.
***
Apesar de ter nascido com várias identidades, a melhor que eu gostava, era a de ser interplanetária, mas quando eu olhava minha avó, uma mulher de traços fortes, olhos rasgados, pele ressecada pelo sol nordestino e oceânico indígenas, suas lágrimas, eu me preocupava. Seus seios e ventres eram proeminentes, eu percebia nitidamente, o sofrer daquela mulher. Eu não sabia o que era o sofrer. Eu viajava nas suas lágrimas que às vezes vinha com o alcoolismo escamoteado. Eu me indignava!
As minhas primeiras perguntas da minha vida foram precisamente essas: O que era a pobreza? Porque chorava minha avó?
Quando eu tinha seis anos, minha avó me deu uma pedra de cor verde alface clara, de uns 20 cm, quase que transparente.
À tardinha vovó contava histórias e, eu e minhas pequenas mãos manuseávamos aquela pedra como que algo magnético, mágico, poético e porque não dizer cosmológico. Meu olhar fixava naquela pedra e meus ouvidos nas histórias de minha avó Maria de Lourdes de Souza. Essa pedra era a extensão cosmológica de nossa cultura indígena, o lado que não se podia tocar, era a história, o lado imemorial, o transcendental, o espiritual possivelmente, a essência de nossas vidas. Isso nos pertencia verdadeiramente? Representava a cultura de nossa família? Representava a cultura e extensão cultural de um povo colonizado, catequizado? Seria o que a líder e pajé Potyguara Maria de Fátima Potyguara, assim como os velhos e velhas, chamavam de “mesinha” (cultura de mesinha)? Certamente que sim!
Essa extensão celular de uma cultura generalizada era parte do todo. Minha pequena vida e pequena história faziam parte de um contexto social, político e econômico. Tinha origem, tinha nome, tinha etnia. Então eu existia.
A cultura indígena, na minha família ia além daquilo que podemos ver, ia inclusive, além da representação territorial, e que me perdoe a ciência antropológica. Um povo, mesmo fora dessa representação territorial, é capaz de manter-se vivo e fazer perdurar sua cosmovisão, por mais esfacelada que ela esteja. Manter-se firme e verdadeiro à sua ascendência é fidelidade e dignidade contra o espírito da destruição.
Nos anos de 2000 surge no cenário indígena a jovem Dra. Lúcia Fernanda Jófej, da etnia Kaigang do Sul do Brasil, uma das primeiras advogadas indígenas no Brasil, extremamente inteligente, grande oradora_ que simbolicamente acalentei em meu colo com definições teóricas sobre propriedade intelectual dos povos indígenas, era filha de minha amiga e líder indígena Andila Inácio que muito eu admirava. Ao ouvir dessa jovem mulher indígena de garra, me lembrei de tudo que havia vivido com minha avó e família indígenas depauperadas pela neocolonização do algodão na Paraíba. Esse era o berço de minha doce avó e madrinha. Realmente uma líder formadora de opiniões. São histórias que o/as jovens não entendem e mal podem aceitar ou reconhecer. São histórias que não foram contadas e nem são permitidas essa contação. São coisas de gente muito velha, e de velhos e velhas que não têm espaço nem vozes nesse país, ainda. Eu sou fruto desse processo.
Na Conferência do Enlace Continental de Mujeres Indígenas, no Canadá, no território dos Mohaks, em junho de 2007, as mulheres jovens e anciãs transformavam o IMEMORAL de nossas vidas em teses e declarações, planos de ações políticas para a defesa da cultura indígena em todo o mundo. Indígenas e indigenistas brasileiros ainda precisam perceber essa imemoriabilidade não contada, não expressa no óbvio, nas aldeias e na cultura. Muitas das vezes, história a ser contada pode não ser um requisito necessário. O obscurantismo, o segredo não revelados podem ser os caminhos da perpetuação da ética. Há muito mais além do que os olhos possam perceber.
As lágrimas de minha avó e o olhar estagnado no ar formavam o resultado da violação aos direitos humanos das mulheres indígenas, mais precisamente o resultado da descriminação racial e social que burlava a memória ancestral, as histórias, a espiritualidade indígena de uma família.
Enfim, parte perdida, célula solta, desgarrada, discriminada internamente, não reconhecida até pelo seu próprio povo, porque minha família não ficou lá, nenhuma única voz para contar essa história. A existência dessa família caiu no anonimato e no esquecimento, uma cruel realidade. Essa parte pode estar perdida no contexto comunitário, territorial, mas não está perdido no contexto cosmológico, imemorial e visionário. Assim tem acontecido com muitas famílias indígenas “destribalizadas” por qualquer tipo de problema.
Eu não poderia deixar de falar desse conceito ao falar de minha vida. E foi exatamente ali, naquela pedra verde alface que o mundo cosmológico se formou em minha mente, através das histórias que a minha avó_ uma vendedora de bananas_ contava, enquanto retirava lêndeas de meus cabelos negros e lisos. Ás vezes eu sentava entre as pernas de minha mãe, e num calor e carinho sobrehumanos, horas e horas as pobres lêndeas eram dilaceradas entre as unhas dos dois polegares de mamãe. Eu quase dormia e entre uma soneca e outra eu dava um pulo e um grito de incômodo, para não dizer da dor da puxada de cabelo, quando mamãe arrancava aquele animalzinho intruso e ele se recusava a sair. Os piolhos parecem que adoravam também o carinho das mulheres por isso adorava aquele calorzinho capilar!Quem não gosta de amor, carinho e histórias?
Depois vovó me dava o café da tarde, beiju caseiro, inhame ou fruta-pão quentinho que eu adorava!
Foi nesse cenário que vivi a minha solitária infância, mas cheia de amor.
Por causa do deslocamento total interno da família para o Rio e Janeiro, as mulheres da minha casa não permitiam que eu brincasse com outras crianças e me aprisionaram num quarto durante toda a minha infância, onde eu dormia num baú doado pelos portugueses, imigrantes da 2ª guerra mundial. Eu nunca me lamentei pela perda da infância, a infância normal de todas as crianças. Eu agradeço a proteção e a forma cultural de educação indígena. Foi por essa proteção que acabei nascendo uma anja um pouco torta. Ninguém é perfeito não é? Amigas de minha família diziam que eu era um anjo e eu me perguntava, porque um anjo. Eu era, segundo meu olhar crítico, uma anja, se é que era mesmo. E também ficava imaginando o mundo dos anjos que amigas de minha família não indígena se referiam. Era o anjo Gabriel, anjo Rafael, Anjo Miguel, Anjo Uriel todos eles do sexo masculino. E eu tinha que ser um anjo como diziam: “essa menina é um anjo!” Viajando na pedra verde e na sincronicidade do tempo, hoje eu me pergunto: E a anja Doroty, por exemplo? Uma indígena que muito contribuiu com os Bakairi. E a anja Maninha Xukuru-Kariri, irmã do espaço sideral, foi-se fisicamente e deixou mensagens para seu povo. E as anjas Mães de todas e todos líderes de nosso país? E a anja especial Mãe de Marçal Tupã-y entre outras.
Anja também foi minha saudosa avó. Anja foi minha severa e adorável mãe, hoje rainha do espaço. Com elas aprendi a ter dignidade, a combatividade, força e coragem. Foi por causa delas que entrei para o movimento indígena desde 1976. Mas foi com sete anos, precisamente que me tornei uma pequena escritora, porque eu precisava escrever as cartas que vovó ditava. E ao lado disso, precisava ler as cartas que chegavam da Paraíba. Por essa razão, me sinto paraibana, uma das milhares identidades que tenho. Conheço na palma da minha mão, as linhas dos sofrimentos do exílio de minha avó e peço respeito a essa identidade. Faço parte destas histórias no sangue e nos fatos. Conheço a pobreza paraibana, a partir de dentro de minha própria casa. Conheço a burguesia e o poder paraibanos dos anos 20 e 30, mesmo ainda no útero, porque eles foram os causadores de nossos sofrimentos e angústias. São rastros que ficaram e a justiça nunca foi feita. Só ignorada e invisibilizada. Aquele contingente de pessoas imigrantes_ minha família_ poucos descendentes deixaram. Todos e todas morreram pelos maus tratos da imigração. Eu e meu irmão somos os últimos daquela geração sacrificada pela pobreza. E eu não tenho mais lágrimas, elas secaram como o chão agreste, mas a cotovia canta e ecoa em palavras... E a alma voa! “E não se seca a raiz de quem tem sementes espalhadas para brotar”, escrevi isso há mais de vinte anos, no poema “Oração pela Libertação dos Povos Indígenas”, um cântico.
A pobreza é a maior violação dos direitos humanos, eu não sabia disso quando era criança. As lágrimas de minha avó, assim como a vida de milhares de mulheres indígenas do mundo, refletem esse tipo de violação. A pobreza é o resultado das maiores competições, guerras e conflitos do planeta Terra. As mulheres e crianças sofrem com a pobreza. A pobreza é um fator determinante de violência a um ser humano.
É preciso erradicar a pobreza no planeta Terra. É preciso dar voz aos calados, aos excluídos. Centenas de tratados, convenções, declarações foram escritos no contexto nacional e internacional, mas a pobreza continua. O que está faltando? Será que não há um mito errôneo com relação às mulheres. Vejamos:
Toda mulher quer ser mulher, porque ser mulher é também contribuir com a ética para o crescimento da Humanidade, principalmente quando ela busca não perpetuar a cultura dominante e secular que impõe padrões preconceituosos na criação dos filhos e filhas. Toda mulher quer ser mulher por perceber a luta pela igualdade de gênero e quando ela trabalha para isso na nova sociedade, no cotidiano de sua vida, nas relações com o esposo, filhos, filhas, irmãos, irmãs, parentes e amigos. Nos dez pontos que escrevi no Dia Internacional da Mulher, em março de 2006, no texto “Quer ser Mulher? Perguntou Deus!” (veja em: http://grumin.blogspot.com) tive o objetivo de polemizar e chamar a atenção da sociedade para diversas culturas e regimes sócio-político e econômicos que impõem uma vida indigna às mulheres.Temos muitos avanços na classe média ou nos grupos mais esclarecidos, quando mulheres já possuem diversas posições no contexto social e quando seu status no lar atinge patamares respeitáveis, salvo exceções como, por exemplo, em relação aos assassinatos de mulheres jornalistas, artistas e outras profissionais e com ascensão econômica. No entanto, as mulheres pobres e as altamente miseráveis de todas as etnias sofrem ainda em conseqüência da violência masculina e discriminação da própria sociedade. E esse fato é um desafio para grupos de mulheres organizadas por seus direitos e um desafio para os governantes no setor da Educação, Trabalho e Saúde, tanto no Brasil quanto nos outros países.
Eu convoco homens e mulheres_ cidadãos, cidadãs do mundo_ a refletirem das sobre a idéia errônea de que as mulheres são exemplos de estereótipos de santas, anjos ou demônios.
A mulher é sagrada, sim! Porque ela dá a vida, assim como a natureza é sagrada por prover vida. Mas a mitificação da mulher pelo homem causa estragos, desvios comportamentais, pornografias, culturas dominantes, atos selvagens contra o sexo feminino, como vemos nos outros países e inclusive no Brasil.
Vamos adorar nossas mães apenas no sentido poético, amoroso, porque a exacerbada veneração leva à mitificação maléfica, que na realidade é um desrespeito à mulher. Mães querem ser amadas e respeitadas. Amo a minha mãe pelo que sou, devo a ela respeito e ela está na minha memória, porque foi uma grande iletrada mulher, mas possuía conceitos e lições de uma verdadeira mulher.
Voltando à questão do sentimento de infância e ao olhar com relação à pobreza, hoje passados 60 anos da minha vida, ainda temos mais de 300 milhões de indígenas no planeta terra, vivendo em 70 países que sofrem da pobreza, mas mantêm-se culturalmente falando mais de seis mil línguas diferentes. Os povos mantêm uma bagagem cultural imemorial e que não se pode se medir em valores. Só na América Latina temos 50 milhões de indígenas que convivem diariamente com a pobreza, o analfabetismo e desinformação, sendo as mulheres indígenas mais vulneráveis. São as mulheres as despossuídas de ferramentas e meios para manter a enorme tarefa de transmitir a cultura às novas gerações, mantendo a identidade e demonstrando à humanidade o papel altamente importante da manutenção da identidade indígena.
Hum milhão de indígenas vivem também nas cidades, mas ninguém perdeu sua ancestralidade indígena e a consciência indígena tem crescido para o bem da identidade. Queria que minha avó estivesse viva para ver esse fenômeno histórico. Certamente suas lágrimas secariam de tanto sorriso na face. É possível uma mudança a partir da escola. E mais... Podemos orar por melhores condições de vida!
ORAÇÃO PELA LIBERTAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
Dedicado a Marçal Tupã-y, cacique guarani nhandewa assassinado em 1983
Parem de podar as minhas folhas e tirar a minha enxada
Basta de afogar as minhas crenças e torar minha raiz
Cessem de arrancar os meus pulmões e sufocar minha razão
Chega de matar minha cantigas e calar a minha voz.
Não se seca a raiz de quem tem sementes
Espalhadas pela terra pra brotar.
Não se apaga dos avós _ rica memória
Veia ancestral: rituais pra se lembrar
Não se aparam largas asas
Que o céu é liberdade
E a fé é encontrá-la.
Rogai por nós, meu pai - Xamã
Pra que o espírito ruim da mata
Não provoque a fraqueza, a miséria e a morte.
Rogai por nós _ terra nossa mãe
Pra que essas roupas rotas
E esses homens maus
Se acabem ao toque dos maracás.
Afastai-nos das desgraças, da cachaça e da discórdia,
Ajudai a unidade entre as nações.
Alumiai homens, mulheres e crianças,
Apagai entre os fortes a inveja e a ingratidão.
Dai-nos a luz, fé a vida nas pajelanças,
Evitai, ó Tupã, a violência e a matança.
Num lugar sagrado junto ao igarapé
Nas noites de luas cheia , ó Marçal, chamai
Os espíritos das rochas pra dançarmos o Toré.
Trazei-nos nas festas da mandioca e pajés
Uma resistência de vida
Após bebermos nossa chicha com fé.
Rogai por nós, ave-dos céus
Pra que venham onças, caititus, siriemas e capivaras
Cingir rios Juruena, São Francisco e Paraná.
Cingir até os mares do Atlântico
Porque pacíficos somos , no entanto.
Mostrai nosso caminho feito boto
Alumiai pro futuro nossa estrela
Ajudai a tocar as flautas mágicas
Pra vos cantar uma cantiga de oferenda
Ou dançar num ritual Iamaká.
Rogai por nós, Ave-Xamã
No Nordeste, no ul toda a manhã
No Amazonas, agreste ou no coração da cunhã.
Rogai por nós, araras, pintados ou tatus
Vinde em nosso encontro
Meu Deus _ Nhendiru!
Fazei feliz nossa mintã
Que de barrigas índias vão renascer.
Dai-nos cada dia a esperança Porque só pedimos terra e paz
Pra nossas pobres- Essas ricas crianças.
Eliane Potiguara é professora, escritora, contadora de histórias, ativista indígena e feminista. Foi indicada em 2005, ao Projeto Internacional “Mil mulheres ao Prêmio Nobel da Paz”. É fundadora e coordenadora da 1ª organização de mulheres indígenas no país (GRUMIN/Grupo Mulher-Educação Indígena) e co-participe política da criação e evolução do movimento indígena brasileiro. Diretora do INBRAPI (Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade intelectual) Foi eleita uma das 10 mulheres do ano de 1988 no Brasil, participou por uma década da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Indígenas na ONU em Genebra. Autora de vários livros, entre eles "Metade Cara, Metade Máscara” Global Editora e no prelo “A Cura da Terra”.
www.elianepotiguara.org.br
http://elianepotiguara.blogspot.com
www.grumin.org.br
http://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_18/eliane_potiguara.html
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