Por Samir Naliato
Data: 9 janeiro, 2015
O ataque terrorista à redação da revista Charlie Hebdo, no último dia 7 de janeiro, foi feito por radicais que alegam ser membros da Al-Qaeda, uma organização fundamentalista islâmica que também atuou no atentado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.
O fato criou grande comoção. Mas, como aconteceu há quase 15 anos, é possível perceber um movimento de descriminação que generaliza essas ações a todos os muçulmanos. Pessoas que não compactuam com estes atos de terror são acusadas e sofrem retaliações por seguirem esta religião. E se esquecem de que todos são vítimas destes acontecimentos (inclusive, um dos mortos na Charlie Hebdo era muçulmano).
O quadrinhista Altemar Domingos tem uma experiência bastante particular, que vale a pena ser contada. Há três anos, ele trabalha com a revista em quadrinhos Nabil, encomendada pelo Centro Islâmico Brasileiro, sobre um menino muçulmano brasileiro e sua família.
Para produzir as histórias, precisou conhecer mais a religião e tem reuniões periódicas com pessoas do centro.
Altemar já trabalhou em agências de publicidade e no jornal Lance!. Em 2002, decidiu se trabalhar exclusivamente como ilustrador. Prestou seus serviços para estúdios, editou jornais infantis e criou o selo Eureca! Editora. Ele é também professor de quadrinhos, desenho básico e pintura digital naEBA! (Estúdios Artísticos, Brasil!). Pela editora Via Lettera, publicou a revista Jaguara, que atualmente possui um blog para a história ser lida online.
Leia abaixo o depoimento que Altemar Domingos enviou ao Universo HQ.
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O que dizer ou pensar sobre a barbárie cometida na redação da Charlie Hebdo?
Não existem palavras. Na verdade existem, mas só palavras muito ruins para tentar explicar um ato absurdo extremista, cruel e covarde dessa forma.
Tudo bem que o humor era forte e ousado, mas nada justifica um desfecho incrivelmente brutal como este.
Eu conheço alguns trabalhos dos cartunistas que perderam a vida nessa tragédia, e tenho amigos de profissão que os conheceram pessoalmente. O que importa é que a arte e o jornalismo perderam muito no último dia 7 de janeiro.
Em janeiro de 2012, fui convidado, através da indicação de uma amiga, a ilustrar e produzir uma revista em quadrinhos para crianças chamada Nabil, que é o primeiro personagem infantil brasileiro muçulmano. Esta HQ me foi encomendada pelo Centro Islâmico Brasileiro, e a ideia era criar um personagem muçulmano brasileiro. Nascia então o Nabil.
Sua concepção foi baseada nos ideais e nas intenções desses meus contratantes: criar histórias direcionadas à família, com aventuras e algum ensinamento bonito para se passar para as crianças que iriam ler essa nossa revista.
A distribuição do Nabil é feita pelo Centro Islâmico Brasileiro. Uma parte é gratuita e vai para escolas específicas, alguns comércios e estabelecimentos. Outra parte é vendida por um preço acessível no site do Centro.
Estamos atualmente desenvolvendo a sexta edição, prevista para março ou abril.
Tenho reuniões a cada três ou quatro meses no Centro Islâmico Brasileiro para discutir o roteiro das histórias. Sentamos juntos e discutimos ideias espontâneas sobre a aventura sempre baseada em um ensinamento bacana vindo do Alcorão. E é isso que eu quero expor com esta declaração.
Eu não sou um conhecedor profundo dessa religião, e não estou querendo defende-la, mas sim apenas informar: não existe nada, absolutamente nada que faça menção a qualquer comportamento violento em todas as mensagens baseadas no Alcorão que me passam para eu ilustrar e transpor isso para os personagens.
São mensagens de respeito e amor à família, de bons modos, de fé e respeito ao próximo.
Um dos pontos marcantes é a tolerância, o bom convívio e entendimento com as várias outras religiões e etnias. Saber dividir e compartilhar com o próximo, conceitos totalmente contrários aos vistos nessas ações bárbaras e cruéis.
Eu passo entre duas e três horas discutindo estes valores com meus contratantes para elaborar o roteiro das histórias, sempre deixando uma dessas mensagens bonitas no contexto de cada aventura dos personagens.
Decidimos por fazer histórias simples, sem muito heroísmos muito menos ilustrar qualquer comportamento agressivo, baseadas no cotidiano de um menino de sete anos, que é a idade do Nabil;
de seu irmãozinho Jamil, de três anos; de sua irmã Sara, de nove anos; de seus pais, Fátima e Mohamed. Uma família brasileira muçulmana genuína que mora na capital de São Paulo.
O Centro Islâmico possui uma editora que publica muitos livros sobre a cultura deles aqui no Brasil. Lembro-me de um livro que me deram para que eu lesse para poder entender melhor o Alcorão, escrito de forma mais simples e objetiva. Me foi de grande valia para desenvolver as histórias.
A primeira edição foi lançada em 19 de abril de 2012 (uma data com muitos significados pessoais pra mim) em uma escola islâmica ao lado do terminal Princesa Isabel. Foi um lançamento muito legal, onde dezenas de alunos me aguardavam e estavam ansiosos por um autógrafo, o que me deixou muito envaidecido e realizado.
Claro que existem hábitos muitos diferentes dos nossos, como por exemplo não poder cumprimentar nenhuma mulher que segue a religião com as mãos muito menos com um beijo no rosto. Mas nem por isso são menos simpáticas e faladeiras.
Aliás, todas as professoras me receberam muito bem. Vieram conversar comigo sobre a revista, o seu uso dentro da sala de aula e os ensinamentos ali contidos para seus alunos. Já participei de tardes de autógrafos na Bienal de São Paulo com muitas crianças brasileiras e muçulmanas. Crianças adoráveis, educadas, divertidas e simpáticas.
Na Bienal, alguns homens usaram o traje típico no estande e ao circularem pela feira, chamando muita atenção. Eu via crianças e adultos parando-os e pedindo para tirar fotos e todos prontamente atendiam esses pedidos.
Em 2012, um amigo de profissão chamado Eduardo P. Barbieri, editor da revista brasileira La Bouche du Monde, me pediu um exemplar da segunda edição de Nabil para inscrevê-lo em um festival de quadrinhos na Argélia chamado FIBDA, onde o Nabil foi selecionado para fazer parte do catálogo oficial de evento. Uma tremenda honra para todos nós.
Mas a verdadeira intenção desse texto é mostrar que existem alguns fanáticos que distorcem os conceitos dessa religião, como acontece em tantas outras também, e promovem atos de terrorismo em todo o mundo.
A maioria maciça dos muçulmanos que seguem esta religião são pessoas do bem. Em geral, vivem de forma muito simples independentemente de suas posições sociais. Tem um senso de família admirável, unidos, respeitosos, divertidos e muito simpáticos. Seguem uma religião que em nada prega ou apoia tais atos, que mancham as suas próprias imagens e condutas. É nesse ponto que pode acontecer uma grande injustiça, por isso é importante que as pessoas saibam um pouco mais sobre os costumes reais desse povo.
O que infelizmente aconteceu na redação da Charlie Hebdo, são atitudes extremistas e absurdas em nome de uma fé que só essa minoria fanática enxerga e cultua: fé ao ódio!
Não vou entrar em questões políticas que não me cabe, e nem tenho conhecimento suficiente para isso. Sabemos que o tipo de humor usado na revista era crítico, forte, ácido e que geram controvérsias. Sabemos também que muitos não gostaram das tais caricaturas. Muitos muçulmanos realmente se sentiram ofendidos com isso, mas não concordar faz parte do processo da crítica. Entretanto, nada mesmo justifica o que aconteceu, e essa indignação será perpétua.
É muito lamentável e triste. O humor, simples, ácido ou crítico deveria trazer alegria e reflexão, e não isso.
- Altemar Domingos, quadrinhista
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