Quadrinhos
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A Iluminação de Buda ou a redação do Talmude hebreu ganham forma nas páginas das HQs
Por Marcelo Rafael
No início, era o verbo. Do verbo, fez-se a História. A História se fixou em literatura. Da literatura, surgiram os quadrinhos. Destes, veio uma nova forma de contar relatos religiosos dos mais diferentes cantos do planeta, desde os sutras budistas, passando pelos versos da Bíblia e pelas leis do Talmude até as suras do Alcorão.
Vários quadrinhos já apresentaram o sagrado para leigos sem a intenção de catequizar. O mais recente deles é Habibi, do premiado Craig Thompson, que chegou ao Brasil pela Cia. das Letras na última Bienal do Livro de São Paulo.
Habibi não é necessariamente religioso: narra a difícil jornada de vida de dois órfãos, Dodola e Zam, em um país fictício, entremeando histórias das Mil e Uma Noites. Mas algumas passagens das suras – os capítulos do Alcorão – também são ilustradas por Thompson no decorrer da narrativa.
A questão é delicada, uma vez que, segundo algumas interpretações das leis islâmicas referentes à idolatria, não é permitida a representação de pessoas ou animais em obras que falam sobre o sagrado.
A crise mais conhecida em função disso veio da publicação de uma caricatura do profeta Maomé (ou Muhammad) em um jornal dinamarquês em 2005. Protestos de comunidades islâmicas ao redor do mundo provocaram a pior crise diplomática da Dinamarca desde a II Guerra Mundial, segundo o então primeiro-ministro daquele país. O redator-chefe do jornal chegou a receber ameaças de morte.
Sidney Gusman, editor do site Universo HQ e responsável pelo planejamento editorial da Mauricio de Sousa Produções, não conhece os preceitos do Islã, mas considera que seja possível fazer uma obra em quadrinhos sobre a religião. “Desde que seja respeitoso. Claro, não foi o caso da caricatura”, explica.
Até a Turma da Mônica já entrou no tema, com Chico Bento no papel do Diabo e Cebolinha como Jesus Cristo, em Minha Primeira Bíblia.
Dadas as devidas considerações, qualquer crença pode ser abordada nos quadrinhos, segundo ele. “O mais legal é que a maioria (dos artistas) consegue fazer versões que têm sido respeitosas, que conseguem não desagradar o pessoal que acha que esse tema é intocável”, afirma Sidney.
O problema de contar a história de Maomé em HQ sem poder desenhá-lo foi facilmente contornado por Larry Gonick em A História do Mundo em Quadrinhos. Apesar de não ser religioso, o livro trata do nascimento da religião árabe e da expansão do mundo muçulmano pela Ásia, África e Europa. Atendo-se aos preceitos islâmicos, Gonick, com muito bom humor, simplesmente considerou que o profeta estaria sempre “fora do quadrinho”, aparecendo apenas seu balão de fala em todas as suas passagens.
INTERPRETAÇÕES PESSOAIS
Poderia soar estranho ao leitor leigo apresentar relatos bíblicos como História, mas é o que ocorre em A História dos Judeus, da Via Lettera. A proposta do norte-americano Stan Mack é ousada ao narrar um povo cuja cultura até hoje é indissociável da religião. A HQ se inicia com mitologia religiosa, evolui para História em si e chega a temas políticos atuais, como a questão da Palestina.
Mas alguns eventos do povo judeu ficaram de fora. Mack conta, entre muitos outros acontecimentos, a chegada dos judeus às Américas, mas esquece de mencionar que a primeira sinagoga do continente foi fundada em Pernambuco, sob domínio holandês. Outra passagem omitida é sobre os judeus etíopes, convertidos pela Rainha de Sabá, como bem explica Gonick em seu A História do Mundo.
É o olhar próprio de cada autor que decide os rumos das mais antigas e recontadas histórias. A Bíblia também tem suas versões. Em 2008, a JBC lançou o inusitado A Bíblia em Mangá, em dois volumes, O Velho e O Novo Testamento.
Imaginar Jesus Cristo ou Moisés com os olhões típicos do estilo japonês pode parecer difícil, mas foi justamente essa a proposta do britânico Siku, que considerou essa forma de narrativa mais apropriada para apresentar o que considerou uma narrativa cheia de ação e emoção.
Mais recentemente, o brasileiro Laudo Ferreira também se propôs a contar a vida de Jesus Cristo de uma maneira bastante particular. Apesar de não se dizer vinculado a alguma religião, Laudo se considera muito espiritualizado.
No final dos anos 90, ele assistiu a uma série de documentários sobre Jesus que lhe acendeu a centelha de escrever sobre esse assunto. Pesquisou os Evangelhos e os textos apócrifos, além de muitos outros livros. “Devo ter lido uns 200”, conta.
Passou um ano estudando traço, rosto de personagens. “Teve uma época que eu estava até meio louco.”, brinca.
O resultado foi Yeshuah - Assim em Cima Assim Embaixo e Yeshuah - O Círculo Interno, o Círculo Externo que contam o nascimento e os primeiros anos de vida pública de Cristo de forma linear e bem mais próxima do humano. O terceiro volume, com a Paixão e morte de Cristo, deve sair em 2013.
Página do 3° volume de Yeshuah
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“O Yeshuah é absolutamente brilhante e deu uma humanização a Cristo que realmente empolga”, comenta Sidney.
Laudo conta que, em um evento de lançamento em São Paulo, alguns evangélicos fizeram questão de declarar seu credo e dizer que apreciaram a obra. “Em contrapartida, tem gente que leu o segundo volume e torceu o nariz”, completa.
Sidney acha importante que essas HQs falem a todos. “É bacana que pessoas que não leem quadrinhos e que são religiosas leem essas obras, até para ver se estão sendo ‘maculadas’. E não teve reclamações”, afirma.
Mesmo pessoas sem religião se interessam pelo tema. É o caso de Omelino José de Souza Júnior, ateu de pais católicos, que cresceu em um ambiente religioso e chegou a frequentar a catequese. Por indicação do irmão budista, ele leu A História de Buda em Quadrinhos, lançado este ano pela editora Satry.
Diferentemente da odisseia em doze volumes desenhada por Osamu Tezuka e publicada no Brasil pela Conrad, a edição da Satry é mais concisa e se atém à vida e aos ensinamentos do príncipe Siddharta Gautama, mais conhecido como Buda Shakyamuni.
Omelino conta que, hoje em dia, sente vontade de conhecer outras religiões, e este é seu primeiro contato com outros credos além do cristão. “O fato de ser quadrinho é uma abordagem diferente. E acho que atrai um público maior. Como introdução a este tipo de assunto, é uma abordagem bem leve de se ler”, conclui.
De uma maneira ou de outra, os quadrinhos apenas demonstram que existem inúmeras maneiras de contar os mesmos eventos que mudaram o mundo e são repetidos por séculos a fio, de geração para geração, seja por religiosos, fundamentalistas ou até mesmo leigos e ateus.
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